14b- Um «rei desconcertante»

UM «REI DESCONCERTANTE»!

Sabemos – de acordo com os biblistas cristãos – que o Evangelho redigido por Marcos, desde a Comunidade Cristã de Roma, foi o primeiro (dos 4 Evangelhos) a aparecer como “documento Escrito”, a partir das experiências vividas e dos “testemunhos provados”, naquela Comunidade que tinha nascido e crescido, precisamente na capital do Império, em volta de Pedro, “cabeça” visível da Igreja nascente. E o jovem Marcos, discípulo e acompanhante de Pedro nessa Comunidade, assumiu a importante tarefa e compromisso comunitário de redigir este «evangelho», com essa “frescura” e originalidade características, que se refletem, particularmente, no relato da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.

Neste evangelho da Paixão de Marcos – como em nenhum dos outros evangelhos – aparece a “proclamação” da «Divindade de Jesus, embora oculta sempre pela sua humanidade». Isto surge com toda a clareza na figura de «o Rei dos judeus», que Marcos introduz no seu relato, já desde aquela introdução preparatória da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém – “encenação espetacular” – atualmente vivenciada, liturgicamente, na «procissão dos Ramos». “Ao aproximarem-se de Jerusalém, cerca de Betfagé e de Betânia, junto do monte das Oliveiras… Disse Jesus (a dois discípulos): «Ide à povoação que está em frente e, logo à entrada, vereis um jumentinho preso, que ninguém montou ainda. Soltai-o e trazei-o… Levaram o jumentinho a Jesus, lançaram-lhe por cima as capas, e Jesus montou nele… E tanto os que iam à frente como os que vinham atrás clamavam: «Hossana! Bendito O que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino do nosso pai David! Hossana nas alturas!»” [da Leitura evangélica (Mc 11)/para a Procissão dos Ramos]. Então, o “Rei divino, da casa de David, que vem em nome do Senhor”, aclamado assim por todos… aparece agora “montado num humilde jumentinho”! E começam assim, neste episódio, os contrastes e paradoxos… que já na profecia de Isaías apareciam “prefigurados”: “Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba… Tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido” (Is 50 / 1ª L.).

Mas o «escriba» inspirado, Marcos, vai continuar a sua narração da paixão como uma testemunha direta (se não ele, o “seu mestre” Pedro), destacando, em todo o momento, os fatos acontecidos, na sua realidade objetiva e crua, pondo de relevo os contrastes e procurando sublinhar – deliberadamente ou não – todos os reais ou aparentes paradoxos… E assim, até chegar ao máximo paradoxo do escândalo da Cruz (“humanidade”), onde se revela o Filho de Deus (“divindade”). Vemo-lo claramente na exclamação daquele soldado pagão: “O centurião que estava em frente de Jesus, ao vê-l’O expirar daquela maneira, exclamou: «Na verdade, este homem era Filho de Deus»” (Mc 15). E Paulo, por seu lado, escreverá: “…Obedecendo até à morte e morte de cruz… Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes”…(Fl 2 / 2ª L.).

Mas entre aquele início (do jumentinho) e este desfecho (da cruz), o nosso evangelista Marcos vai registando outros contrastes e/ou paradoxos que vão acontecendo com a figura de «o Rei Jesus», sempre desconcertante! Aqui estão alguns desses fatos objetivos, que não admitem qualquer glossa ou comentário.

«Aquele Rei», que mandou procurar o jumentinho e disse: “Ide à povoação…”, é o “mesmo Rei” que, agora, para ter a “ceia Pascal com os discípulos” disse: “Ide à cidade… e perguntai: ‘Onde está a sala, em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?’. Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior, alcatifada e pronta…”.

Já em pleno julgamento, Jesus responderá afirmativamente: “Pilatos perguntou-Lhe: «Tu és o rei dos judeus?». Jesus respondeu: «É como dizes»…  Ao verificar Pilatos que era inocente mas queriam matá-lo por inveja, e querendo soltá-lo, pergunta à multidão: “«Então que hei de fazer d’Aquele que chamais o rei dos judeus?». “Eles gritaram de novo: «Crucifica-O!»”. Deste modo, a multidão, o povo, confirma a condenação de «o seu Rei». Os soldados da corte continuam a farsa, para levar a cabo a condena: “Revestiram-n’O com um manto de púrpura e puseram-Lhe na cabeça uma coroa de espinhos que haviam tecido. Depois começaram a saudá-l’O: «Salve, rei dos judeus!»”… Apesar de tudo, ficará registado para a História: “O letreiro que indicava a causa da condenação tinha escrito: «Rei dos Judeus»”. (Mc 14-15 / 3ª L.). Como diria o próprio Pilatos:  «Scripsi, scripsi» (“o escrito, escrito está”)!

 

Junto com todos os verdadeiros profetas, Senhor,

e principalmente com o Teu Filho Jesus

– o Servo sofredor e o Rei dos nossos corações

quantas vezes temos vontade de gritar-Te!:

«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?».

Sim, declarar que, para nós, «Jesus é ‘o Senhor’»,

ou proclamá-lo como «Rei da nossa vida»,

significa atrair sobre nós desprezos ou injúrias…

Por vezes sentimos que zombam de nós:

«Tu que confias nesse Deus Jesus,

e dizes que é o teu melhor amigo!

Porque é que Ele não te safa do sofrimento,

porque é que não te livra dos teus problemas?»…

Mas nós não deixaremos de confiar em Ti,

apesar dos dias negros e das horas escuras,

como o Teu Filho Jesus, e os Seus discípulos e amigos,

que aceitaram as dores e aflições levando a sua cruz;

e nós não queremos ser menos, Senhor!…

Os sofrimentos e a cruz não nos metem medo

pois estamos certos de que és a nossa força,

de que Tu nunca falhas aos amigos…

Por isso, queremos contagiar do Teu Amor

todos os que vivem à nossa volta,

e cantar os teus louvores com alegria…               

         [ do Salmo Responsorial / 21 (22) ]