Março 2015
19 Março, 2015
PODERÁ HAVER «AMOR SEM CRUZ»?
Deus esperou… e esperou… ao longo da história da salvação… até que os seres humanos estivessem preparados para entender a linguagem do Amor. Esperou… até que o rude e fraco coração humano fosse sensível ao Amor… Como é infinita a paciência de Deus!
Antes desse momento, e durante muitas gerações, JAVÉ (era este o nome que os homens de coração rude e fraco davam a Deus) tinha feito diversas “alianças” – que só podiam ser “rudimentares”, consoante o que eles eram capazes de apreender – para tentar provar, testar, a “consistência” do amor humano… Diz Javé-Deus, pela boca de Jeremias (na 1ª leitura) referindo-se a uma «antiga aliança» falhada: “…Não será como a aliança que firmei com os seus pais, no dia em que os tomei pela mão para os tirar da terra do Egipto, aliança que eles violaram, embora Eu tivesse domínio sobre eles, diz o Senhor”. Alianças deste género, Deus fez, reiteradamente, com «esse povo de dura cerviz»; mas os resultados foram «alianças frustradas», pelas infidelidades do povo. E também sucessivas vezes, foi prometido ao povo uma “aliança nova” e diferente, como aquela que aqui se promete: “…Hei de imprimir a minha lei no íntimo da sua alma e gravá-la-ei no seu coração…”. Então, sim, a partir desse momento – porque já o coração humano será capaz de aceitar o Amor e responder com amor desde o seu íntimo – a partir de aqui, a Aliança, que nunca tinha falhado da parte do «Deus Fiel», também agora não vai falhar da parte do homem. Isto, claro, não por mérito humano mas por “graça de Deus”, pois como fica dito, vai “inscrever a Sua lei (de Amor) no mais íntimo da alma e do coração”, o que acontecerá quando se realizar – no espaço e no tempo – a Encarnação do Filho de Deus, na pessoa de Jesus. Ou, por outras palavras, ao cumprir-se o “sonho Divino” de «Se incarnar na própria natureza humana». Se o mesmo Deus está – “é” – no ser humano, então, “já não terão de se instruir uns aos outros, nem de dizer cada um a seu irmão: «Aprende a conhecer o Senhor»”, pois, no seu íntimo, “todos eles Me conhecerão…”. (Jr 31 / 1ª L.).
Cá está, portanto, a Nova e Eterna Aliança! E esta é a lição que Deus – o Amor – dá a todos os «aprendizes do Amor»: O Amor não se impõe a ninguém, e ainda menos desde o exterior! O Amor dá-se!… Por isso, “falsos amores” são todos os que resultam da utilização do “amor” para dominar alguém. O amor autêntico – lembram-se? – nada espera em troca, porque o único prémio do verdadeiro amor é o próprio amor. Amor cria Amor, sem limites. E esse Amor nunca pode tirar a liberdade a ninguém!
Que o diga, se não, o mesmo Filho Jesus, “o Deus Incarnado”! Como é difícil isto de “dar Amor”, “entregar-se até ao fim, por amor oblativo”! Bem o soube interpretar o autor da carta aos Hebreus: “Nos dias da sua vida mortal, Cristo dirigiu preces e súplicas – com grandes clamores e lágrimas – Àquele que o podia livrar da morte, e foi atendido por causa da sua piedade. Apesar de ser Filho, aprendeu a obediência no sofrimento…”. (Hb 5 / 2ª L.). Mas que coisa maravilhosa e, ao mesmo tempo, enigmática! Como é que Jesus “foi atendido (pelo Pai) nas suas preces e súplicas” se, logo a seguir, diz que “apesar de ser Filho, aprendeu a obediência no sofrimento”? Como é que Deus Pai O escutou e atendeu?… Não será que a oração de Jesus não foi para Se livrar desse “sofrimento e morte”, mas para conseguir ser fiel ao Amor – amor oblativo – que exigia a entrega total até à morte e morte de cruz? Desde logo, agora é que nós entendemos o que Jesus tinha dito noutra altura: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pelos seus amigos”. (ver: Jo 15, 13).
Deixemos, em fim, que, nesta conjuntura, nos penetre a Palavra e a Vida do próprio Jesus, no Evangelho de hoje. “«Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto…”. Porém, à hora da verdade, a situação apresenta-se difícil e complicada: “Agora a minha alma está perturbada. E que hei de dizer? Pai, salva-Me desta hora? Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora. Pai, glorifica o teu nome»…”. É bem verdade que, apesar do conflito instalado no Seu interior, Jesus aceita a vontade do Pai, porque, na sua entrega total, por Amor, está a salvação da Humanidade. E, como sabemos, isto será realizado e cumprido através da Cruz: “Quando Eu for elevado da terra, atrairei todos a Mim»”. (Jo 12 / 3ª L.). É mesmo «Palavra da Salvação»!
Eu preciso com urgência, Senhor,
um coração limpo, puro e genuíno…
Já chega de coração manchado
– frio, rude, incapaz, insensível –
ignorante do que é Amor verdadeiro.
Compadece-Te, ó Deus, pela Tua bondade:
Apaga, deste amor-coração rebelde,
todas as nódoas que lhe ficaram apegadas
nos caminhos escuros de amores egoístas…
Que nasça no profundo do meu ser
um espírito firme de Amor verdadeiro.
Nunca se afaste de mim, ó Pai,
o Teu espírito de Amor e santidade,
que me envolva e cative o coração…
E assim, com esse Amor que reavives em mim,
contagiarei aos corações vadios e errantes,
e os amores transviados hão de voltar para Ti…
[ do Salmo Responsorial / 50 (51) ]
12 Março, 2015
«ENTREGA O FILHO PARA SALVAR O SERVO»
12 Março, 2015
«ENTREGA O FILHO PARA SALVAR O SERVO»
O Amor, como tal, deve ser gratuito, ou então não será amor… «Só o Amor cria Amor» sem esperar mais nada em troca… Penso que, no fundo e teoricamente, todos estamos de acordo com este princípio, embora por achar-nos envolvidos e imersos em ambientes sociais de (falsos) amores interesseiros… a prática e vivência da vida vai noutras direções!
Já o autor do livro das Crónicas se lamenta, em nome de Deus, pelas infidelidades e egoísmos do povo. “Os príncipes dos sacerdotes e o povo multiplicaram as suas infidelidades, imitando os costumes abomináveis das nações pagãs… a tal ponto que deixou de haver remédio…”. E é evidente que quem se sente perdido e falhado sem remédio, e ainda por cima com a consciência de alguma culpabilidade pessoal, acha-se incapacitado para inverter a situação por si só: acaba por se sentir como fechado e preso num «círculo vicioso» de onde não se pode sair, porque não há quem possa quebrar essas correntes… Por isso, aqueles desgraçados, nossos antepassados, nem eram capazes de reagir aos apelos e insistências amorosas do Senhor: “Desde o princípio e sem cessar, enviou-lhes mensageiros, pois queria poupar o povo e a sua própria morada… Mas eles escarneciam dos mensageiros de Deus, desprezavam as suas palavras e riam-se dos profetas…” (2 Cr 36 / 1ª L.). Já naquela altura, sentíamo-nos todos perdidos!
Mesmo assim, já naqueles tempos primitivos, Deus – de Si e por Si mesmo – tomou a iniciativa de promover a salvação do povo (como se vê na segunda aparte dessa 1ª Leitura).
Não fosse o próprio Jesus, o Filho, que no-lo revela abertamente no evangelho de hoje, ninguém ousaria imaginá-lo: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”… (Jo 3 / 3ª L.). Está visto, aqui é tudo Amor (e, como tal, gratuito)!
Posteriormente, será Paulo, na sua carta aos cristãos de Éfeso, quem vai proclamar essa mesma Palavra de Jesus, com clareza luzidia: “Deus, que é rico em misericórdia, pela grande caridade com que nos amou, a nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados, restituiu-nos à vida com Cristo – é pela graça que fostes salvos –”… E note-se essa expressão de gratuidade (“é pela graça que fostes salvos”), expressão que ele vai repetindo, de formas diversas, até ao fim desta 2ª Leitura: “Assim quis mostrar a abundante riqueza da sua graça e da sua bondade para connosco, em Jesus Cristo. De fato, é pela graça que fostes salvos… A salvação não vem de vós: é dom de Deus. Não se deve às obras: ninguém se pode gloriar…” (Ef 2 / 2ª L.). Não há dúvida: Tudo de graça! Ou, como também está escrito: “Tudo é Graça”!
Ainda bem que existe Alguém, Amor por essência (e gratuito por consequência), o nosso Deus-PAI – revelado em e por Jesus! – que é O Único capaz de “quebrar” aquele “círculo vicioso”, de que falámos, e todas as formas de “cadeias”… E o faz com o Seu «Perdão incondicional»! Mas para não haver dúvida, vai ter lugar uma Redenção Admirável, que supera qualquer imaginação ou espectativa humana! Porque só este Deus-Pai é capaz de, «para resgatar os servos, entregar o Filho»! São os Mistérios de Paixão, Morte e Ressurreição que, mais uma vez, iremos reviver na próxima «Semana Santa».
Assim sendo, sempre é possível surgirem cânticos de libertação e de aleluia desde gargantas e vozes apagadas pela desesperança… É esta a “mensagem” que nos traz, mesmo na metade da Quaresma, este IV «Domingo de laetare», de Alegria, que aparece, de improviso, nesta nossa caminhada penitencial – talvez triste, angustiada ou desesperançada –. É o tema da “Alegria de todo o cristão”, aliás, de todo o homem de boa vontade, que o nosso Papa Francisco tenta viver e contagiar, como ponto forte e recorrente: uma atitude evangélica de transformação… (Aí está a sua Carta – exortação apostólica – «Evangelho da Alegria»!)…
Nós, Senhor, nós sim queremos cantar
o nosso cântico de libertação e de aleluia,
mesmo na “terra estrangeira do nosso desterro”,
e no meio das securas poeirentas
deste difícil caminho quaresmal…
Ainda que outros se riam de nós
e dos nossos sacrifícios penitenciais e digam
«Cantai-nos um cântico de Sião»,
longe de nós ficarmos envergonhados…
Sim, porque estamos alegres e satisfeitos,
com a alegria de sermos Teus filhos, ó Deus,
– irmãos de Jesus, nosso Amigo e Salvador –
pegamos nas nossas harpas silenciosas,
dependuradas nos salgueiros da Babilónia,
soltamos as nossas línguas presas na garganta,
secamos as nossas lágrimas antigas…
e entoamos o novo cântico de Sião e Jerusalém,
o hino dos redimidos e resgatados
pela Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo Jesus,
o Filho Amado, ó Pai, que Tu entregaste
para salvar os outros filhos desgraçados…
E nós, que somos esses servos inúteis,
mas eternamente gratos por esta Salvação,
cantaremos para sempre aleluias,
mesmo no meio das tristezas penitenciais…
Nós fazemos da Tua Cidade de Sião,
ó Deus e Pai nosso, a maior das nossas Alegrias!
[ do Salmo Responsorial / 136 (137) ]
6 Março, 2015
ATÉ À «MILÉSIMA GERAÇÃO»…
ATÉ À «MILÉSIMA GERAÇÃO»…
A Divindade – ou seja, Deus nosso Pai – tem Todos os Atributos próprios do que nós, humanos, entendemos como Deidade ou “Ser Divino”. Isto é, qualquer ser inteligente compreende que DEUS será, necessariamente: Omnipotente, Omnisciente, Omnipresente…; Bondoso, Misericordioso, Piedoso, Paciente…; Admirável, Maravilhoso, Sábio, Prudente…; e também, o centro: da Beleza, da Harmonia, do Encanto, da Sedução…; Etc., etc., etc. Estamos todos de acordo em que tudo aquilo que nos parece o Melhor e o Superior, terá de ser Qualidade (Atributo) de Deus.
Há, no entanto, certos traços ou caraterísticas que já não parece normal “atribuí-los” a Deus. Quando dizemos, por exemplo, “Deus pequeno” – lembram-se? – ou: Deus frágil, Deus inferior, Deus humilde, Deus servidor… Pois, mesmo que o não pareça, são também Atributos do nosso Deus, o Deus de Jesus.
Sendo isto assim, já não ficamos “admirados” – ainda que nos possa parecer mais estranho – que o mesmo Deus, nosso Deus, o Deus de Jesus, nos surpreenda também, de vez em quando, com atributos como: Deus Desconcertante, Deus Inesperado, Deus Perturbador, Deus Imprevisível… Deus…
Vejamos. Diz a Palavra de hoje: “Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus cioso: castigo a ofensa dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que Me ofendem; mas uso de misericórdia até à milésima geração para com aqueles que Me amam e guardam os meus mandamentos…” (Ex 20 / 1ª L.). Este texto bíblico, de um livro tão antigo como o Êxodo, é, quando menos, um texto estranho, e, se pensamos melhor, um texto “confuso”… Desde logo, temos de concluir que se trata da Palavra de um Deus desconcertante! O que é que significa – se não for assim – “castigar as ofensas dos pais nos filhos” e, ainda, “punir até à quarta geração… enquanto perdoa até à milésima geração”?
Sabemos, em primeiro lugar, que a linguagem antropológica daquela época atribuía a Deus os estados de ânimo dos humanos (“Deus cioso… que castiga…” ou que «os filhos pagam as favas dos pais»!). Sabemos igualmente, que, a imagem do Pai Deus transmitida por Jesus, o Filho, é a de um Deus bondoso, que “não pode” castigar; que só sabe perdoar sempre… Mesmo assim, ainda fica sem explicação aquilo da “quarta… e da milésima geração”, que, pensando bem, continua a ser confusa e contraditória… porque, por uma lógica estatística elementar, quem perdoa até a milésima geração, muito dificilmente – para não dizer impossível – vai ser capaz de castigar, já que “as mil gerações de perdão” vão se sobrepor umas às outras… de tal modo que “as gerações de castigo” nunca vão poder aparecer… Em fim, todo este raciocínio de simples lógica, foi apenas para cairmos na conta do que significa «o nosso Deus ser desconcertante». E para tirarmos agora esta conclusão: quando Deus, nosso Pai, nos desconcerta, ou nos perturba, é porque tenta transmitir-nos, com essa Sua atitude, uma grande verdade: neste caso, a de que a Sua infinita misericórdia/perdão é capaz de desfazer e diluir a marca de «deus castigador, deus terrível», por nós atribuída.
Ou seja, DEUS PERDOA sempre! Apenas com uma mínima condição: que queiramos ser perdoados (!?). Deus é mesmo assim!… Mas esta realidade, de um Deus Desconcertante – para o nosso bem e felicidade! – aparece ainda patente noutros Textos da Palavra de hoje. Por exemplo, nas palavras de Paulo aos cristãos de Corinto: “… Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”. (1 Cor 1 / 2ª L.). Ou então, na própria palavra e atitude de Jesus – “manso e humilde” – no Evangelho: “Fez então um chicote de cordas e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois; deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou-lhes as mesas; e disse aos que vendiam pombas: «Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio»”… E quando lhe perguntam “«Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?»”, Ele responde com palavras enigmáticas e imprevisíveis: “«Destruí este templo e em três dias o levantarei». Disseram os judeus: «Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo, e tu vais levantá-lo em três dias?». Jesus, porém, falava do templo do seu corpo…” (Jo 2 / 3ª L.). Não há dúvida de que Jesus, desde o seu Ser Divino, está a proceder, igualmente, como Deus desconcertante, provocador, enigmático… E ainda bem!
É verdade, Senhor nosso Pai,
que o Teu Filho Jesus, sendo Deus,
tem palavras de vida eterna…
E as Tuas atitudes, de Deus Transcendente,
tal como as do Teu Filho, homem-Deus,
– enigmáticas, provocadoras, desconcertantes… –
não nos assustam, ó Deus Imprevisível,
porque a Tua “lei” é perfeita e santa,
e as Tuas “ordens” firmes e puras,
para reconfortar as nossas almas…
Os Teus projetos para nós são claros,
iluminam os olhos e alegram o coração;
e aquilo que chamam «temor do Senhor»
não é, da nossa parte, o temor servil que mata,
mas um amor forte que teme falhar…
Porque o Teu Amor por nós, ó Pai,
é mais precioso que o ouro mais fino,
e a Tua Amizade, que nos envolve,
é mais doce que o mel dos favos…
É certo, ó Deus, que o Teu imenso Amor,
às vezes nos “desconcerta” e nos abala…
mas provoca em nós uma amizade reflexa,
essa amizade fiel que transforma por dentro.
[ do Salmo Responsorial / 18 (19) ]
26 Março, 2015
UM «REI DESCONCERTANTE»!
Luis López A Palavra REFLETIDA 0 Comments
UM «REI DESCONCERTANTE»!
Sabemos – de acordo com os biblistas cristãos – que o Evangelho redigido por Marcos, desde a Comunidade Cristã de Roma, foi o primeiro (dos 4 Evangelhos) a aparecer como “documento Escrito”, a partir das experiências vividas e dos “testemunhos provados”, naquela Comunidade que tinha nascido e crescido, precisamente na capital do Império, em volta de Pedro, “cabeça” visível da Igreja nascente. E o jovem Marcos, discípulo e acompanhante de Pedro nessa Comunidade, assumiu a importante tarefa e compromisso comunitário de redigir este «evangelho», com essa “frescura” e originalidade características, que se refletem, particularmente, no relato da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
Neste evangelho da Paixão de Marcos – como em nenhum dos outros evangelhos – aparece a “proclamação” da «Divindade de Jesus, embora oculta sempre pela sua humanidade». Isto surge com toda a clareza na figura de «o Rei dos judeus», que Marcos introduz no seu relato, já desde aquela introdução preparatória da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém – “encenação espetacular” – atualmente vivenciada, liturgicamente, na «procissão dos Ramos». “Ao aproximarem-se de Jerusalém, cerca de Betfagé e de Betânia, junto do monte das Oliveiras… Disse Jesus (a dois discípulos): «Ide à povoação que está em frente e, logo à entrada, vereis um jumentinho preso, que ninguém montou ainda. Soltai-o e trazei-o… Levaram o jumentinho a Jesus, lançaram-lhe por cima as capas, e Jesus montou nele… E tanto os que iam à frente como os que vinham atrás clamavam: «Hossana! Bendito O que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino do nosso pai David! Hossana nas alturas!»” [da Leitura evangélica (Mc 11)/para a Procissão dos Ramos]. Então, o “Rei divino, da casa de David, que vem em nome do Senhor”, aclamado assim por todos… aparece agora “montado num humilde jumentinho”! E começam assim, neste episódio, os contrastes e paradoxos… que já na profecia de Isaías apareciam “prefigurados”: “Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba… Tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido” (Is 50 / 1ª L.).
Mas o «escriba» inspirado, Marcos, vai continuar a sua narração da paixão como uma testemunha direta (se não ele, o “seu mestre” Pedro), destacando, em todo o momento, os fatos acontecidos, na sua realidade objetiva e crua, pondo de relevo os contrastes e procurando sublinhar – deliberadamente ou não – todos os reais ou aparentes paradoxos… E assim, até chegar ao máximo paradoxo do escândalo da Cruz (“humanidade”), onde se revela o Filho de Deus (“divindade”). Vemo-lo claramente na exclamação daquele soldado pagão: “O centurião que estava em frente de Jesus, ao vê-l’O expirar daquela maneira, exclamou: «Na verdade, este homem era Filho de Deus»” (Mc 15). E Paulo, por seu lado, escreverá: “…Obedecendo até à morte e morte de cruz… Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes”…(Fl 2 / 2ª L.).
Mas entre aquele início (do jumentinho) e este desfecho (da cruz), o nosso evangelista Marcos vai registando outros contrastes e/ou paradoxos que vão acontecendo com a figura de «o Rei Jesus», sempre desconcertante! Aqui estão alguns desses fatos objetivos, que não admitem qualquer glossa ou comentário.
«Aquele Rei», que mandou procurar o jumentinho e disse: “Ide à povoação…”, é o “mesmo Rei” que, agora, para ter a “ceia Pascal com os discípulos” disse: “Ide à cidade… e perguntai: ‘Onde está a sala, em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?’. Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior, alcatifada e pronta…”.
Já em pleno julgamento, Jesus responderá afirmativamente: “Pilatos perguntou-Lhe: «Tu és o rei dos judeus?». Jesus respondeu: «É como dizes»… Ao verificar Pilatos que era inocente mas queriam matá-lo por inveja, e querendo soltá-lo, pergunta à multidão: “«Então que hei de fazer d’Aquele que chamais o rei dos judeus?». “Eles gritaram de novo: «Crucifica-O!»”. Deste modo, a multidão, o povo, confirma a condenação de «o seu Rei». Os soldados da corte continuam a farsa, para levar a cabo a condena: “Revestiram-n’O com um manto de púrpura e puseram-Lhe na cabeça uma coroa de espinhos que haviam tecido. Depois começaram a saudá-l’O: «Salve, rei dos judeus!»”… Apesar de tudo, ficará registado para a História: “O letreiro que indicava a causa da condenação tinha escrito: «Rei dos Judeus»”. (Mc 14-15 / 3ª L.). Como diria o próprio Pilatos: «Scripsi, scripsi» (“o escrito, escrito está”)!
Junto com todos os verdadeiros profetas, Senhor,
e principalmente com o Teu Filho Jesus
– o Servo sofredor e o Rei dos nossos corações –
quantas vezes temos vontade de gritar-Te!:
«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?».
Sim, declarar que, para nós, «Jesus é ‘o Senhor’»,
ou proclamá-lo como «Rei da nossa vida»,
significa atrair sobre nós desprezos ou injúrias…
Por vezes sentimos que zombam de nós:
«Tu que confias nesse Deus Jesus,
e dizes que é o teu melhor amigo!
Porque é que Ele não te safa do sofrimento,
porque é que não te livra dos teus problemas?»…
Mas nós não deixaremos de confiar em Ti,
apesar dos dias negros e das horas escuras,
como o Teu Filho Jesus, e os Seus discípulos e amigos,
que aceitaram as dores e aflições levando a sua cruz;
e nós não queremos ser menos, Senhor!…
Os sofrimentos e a cruz não nos metem medo
pois estamos certos de que és a nossa força,
de que Tu nunca falhas aos amigos…
Por isso, queremos contagiar do Teu Amor
todos os que vivem à nossa volta,
e cantar os teus louvores com alegria…
[ do Salmo Responsorial / 21 (22) ]