47a- A «Incoerência» e o «70 x 7»

(Ciclo A – Domingo 24 -Tempo Com.)  

 A «INCOERÊNCIA» e o «70 x 7»

Muitíssima gente sabe – e até muitos que não são cristãos – aquele “petição” do Pai-nosso: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12). É verdade que não fomos nós a inventar esta súplica, mas o próprio Filho, Jesus, para nos ensinar como é que devemos orar e pedir ao nosso Pai Deus. Duvido que alguma pessoa normal, de si e para si, tivesse a ousadia de formular esta petição tendo presente o motivo e justificação, bem patente na sua segunda parte. Mesmo assim, o atrevimento – e talvez a “inconsciência” – persiste quando tão frequentemente utilizamos esta proclamação (pelo menos, sempre que rezamos o Pai-nosso) sem pensarmos francamente o que essas palavras significam realmente.

Há, no entanto, outra coisa que ainda impressiona mais. É que, esta “revelação” de Jesus, já tinha sido “inspirada” pelo mesmo Deus, ainda no Antigo Testamento, uns três séculos atrás, através do autor daquele precioso livro Sapiencial, conhecido como Ben Sira ou Sirácide, quem, aliás, tem a intuição de explicar o “seu conselho” com uma lógica meridiana: “Perdoa a ofensa do teu próximo e, quando o pedires, as tuas ofensas serão perdoadas. Um homem guarda rancor contra outro e pede a Deus que o cure? Não tem compaixão do seu semelhante e pede perdão para os seus próprios pecados? Se ele, que é um ser de carne, guarda rancor, quem lhe alcançará o perdão das suas faltas?” (Sr 28 / 1ª L.). Vê-se, pois, nesta lógica argumental a mais perfeita coerência!… Mas o que é que nós fazemos quando, sem nos perguntarmos a nós mesmos se já temos perdoado o nosso próximo, nos atrevemos a dizer (curiosamente, é esta a palavra – atrever – com que nos animam a rezar) o Pai-nosso? Ou será que, assim, teremos ainda de pedir perdão por mais este pecado de “flagrante incoerência”? …

Por seu lado, Jesus, vai utilizar o seu “divino carisma” de contador de parábolas para tentar convencer-nos de que, se não estivermos atentos à nossa sinceridade, podemos até ficar muito mal diante dos outros irmãos. É que a “distância” entre a magnitude ou valor da “dívida perdoada” pelo Senhor e “a dívida” que nós teimamos em não perdoar ao nosso semelhante é tal, que a nossa cegueira (in)voluntária nos deixará profundamente envergonhados e humilhados: “Então, o senhor (da «parábola») mandou-o chamar e disse: ‘Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque mo pediste. Não devias, também tu, compadecer-te do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?’. E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos, até que pagasse tudo o que lhe devia” (Mt 18 / 3ª L.). É que  o Pai de Jesus não quer – e Ele também não – ter de tratar os seus filhos como aquele “senhor” teve de proceder com o seu “servo mau”. Caso contrário, seria assim tratado pelo Pai celeste “aquele que não perdoar a seu irmão de todo o coração” (Mt 18).

E coitados de nós se, além disso, andamos a medir e calcular – com aquela matemática ruim dos «70 x 7» – quantas vezes, e até que ponto, devemos, ou não, perdoar o nosso irmão! Agindo deste modo juntaríamos à nossa incoerência… uma grande dose de ruindade! Que Deus não o permita!

Porém, não se trata só de evitar o negativo. Ficaríamos assim muito aquém do que se exige a pessoas que, além do mais, foram sempre envolvidas com um Amor tão infinito, e são objeto de uma imensa generosidade. Então, a um Amor Generoso corresponde um amor não menos generoso: pois Quem se entregou, sem medida e até ao fim, requer uma correspondência semelhante, “coerente”, com todas as consequências, como nos lembra Paulo na sua carta aos romanos. Este apóstolo, com essa liberdade e radicalidade que o caracteriza, traça-nos hoje, para a nossa vida cristã, umas coordenadas perfeitamente coerentes. A partir de agora, não tem já sentido vivermos (ou morrermos) para nós ou a pensar só em nós: “Irmãos, nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo”. De tal modo que a conclusão, coerente com todo o anterior, está bem clara: É em função d’Ele, do Senhor Jesus, que tudo tem sentido, nesta dialética do Amor: “Se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Portanto, quer na vida quer na morte, pertencemos ao Senhor” (Rm 14 / 2ª L.).  

Porque Tu és clemente e compassivo,

paciente e cheio de bondade, Senhor,

prometo não esquecer os Teus benefícios…

Porque Tu perdoas todos os meus pecados

e és capaz de curar todas as doenças do meu coração,

– tantas vezes egoísta e mesquinho

e tantas outras incoerente e ruim –

que não é capaz de perdoar mas quer ser perdoado…

Porque Tu, ó Pai nosso, não és como nós:

Tu salvas da morte a nossa vida,

nos envolves da Tua graça e misericórdia

e nos perdoas sempre sem condições…

Verdadeiramente é grande a Tua misericórdia,

tão grande como a distância da terra aos céus,

como o Oriente dista do Ocidente…

Com o teu perdão generoso e compassivo

afastas de nós, a uma distância infinita,

os nossos pecados de egoísmo e de incoerência…

Quero que a minha alma Te bendiga, ó Senhor,

e que todo o meu ser bendiga o Teu nome santo:

Portanto, bendiz, ó minha alma, o Senhor

e nunca esqueças nenhum dos seus benefícios!

                              [ do Salmo Responsorial / 102 (103) ]